Jaime Lopes Dias, na sua «Etnografia da Beira», deu a conhecer esta estranha lenda já quase esquecida no nosso concelho. Aqui vai a transcrição:“As escarpas e ravinas que pendem sobre o leito do rio Zêzere, entre Pedrógão Grande e Pedrógão Pequeno, são tantas e tais que a cultura só ali é possível e pequena escala e através de grandes dificuldades.
Entre a mole imensa de grandes penedos, entrecortada de precipícios e panoramas formosos, como poucos tem a Beira Baixa, vicejam espontaneamente grande número de árvores e pequenas hortas que emprestam à paisagem nota de cor, frescura e alegria.
Em certo tempo, bonita moça, filha de modestos trabalhadores, seguia todas as manhãs, mal o sol nascia, agulhas e linhas na cesta pendurada do braço para fazer sua renda, a guardar avantajada porca seguida de anafados leitões. Passava os dias descuidados a ver a renda crescer e os bacorinhos medrar; regressava a casa pelo pôr-do-sol a ajudar a mãe no arranjo da casa e preparo da ceia.
Uma tarde, ultrapassada em muito a hora costumada do regresso, os pais, aflitos pela injustificada demorada da filha, dirigiram-se à horta, percorrendo e tornando a percorrer inutilmente todos os caminhos e veredas. Por muito tempo andou inquieta a população, que, em peso, implorava a Deus e aos santos o aparecimento da donzela. Com certeza arte do demo ou malefício desconhecido enredara a pequena.
Um dia, encontrando-se a pobre mãe na labuta da vida, no granjeiro da horta, apareceu subitamente a seu lado um homem que lhe pedia para ir assistir a uma mulher que ali próximo se encontrava sem qualquer auxílio. Acedeu ela à solicitação que lhe era feita, e seguiu o sujeito.
Caminhando algum tempo por veredas e atalhos, em certa altura abriu-se no terreno (estranho mistério) um alçapão. Ele entrou primeiro e ela, receosa, hesitou. Logo ele a tranquilizou e convenceu de que nenhum mal lhe aconteceria. Desceu, efectivamente, e breve se encontrou em presença de um corredor e de um interior de palácio de maravilha onde nada faltava. A pobre mulher estava estonteada!
Assistiu à parturiente e preparou a criança, ao mesmo tempo que o desconhecido morador do palácio lhe dava um frasco para, com o líquido que continha, lavar os olhos ao menino; mas recomendando-lhe e tornando a recomendar-lhe que não lavasse os olhos dela, porque, se tal fizesse, ficaria cega.
Curiosidade de mulher, mirou e remirou o frasco, e pensou de si para si: «E se eu lavasse um dos meus olhos? Mesmo que cegasse dele, sempre ficaria a ver do outro!»
Se bem o pensou, melhor o fez. Vestida a criança, foi colocá-la ao lado da mãe e, supremo espanto, viu então, mercê do líquido com que lavara um dos olhos, que a mulher a que assistira era a sua própria filha! E disse-lhe:
- Tu és a minha filha?
- Ó minha mãe, cale-se! Se ele a conhece, é capaz de a matar! Vá-se embora e não volte, que será a minha perdição eterna.
A mulher, com o coração sabe Deus como, despediu-se para se ir embora! O homem, como paga, deu-lhe uma grande mão-cheia de carvões. Fraca mulher, só, e a braços com tamanhas surpresas, perturbada e confusa, pegou na oferta e, sem atender no que recebia, meteu-a na algibeira do avental e saiu.
Em pleno ar livre, procurando orientar-se, olhou e tornou a olhar para todos os lados, mas já não viu rasto da porta ou do alçapão por onde saíra! Aflita, fora de si e morta por desabafar e contar ao marido tudo o que se passara, dirigiu-se para casa.
Entretanto lembrou-se de meter a mão na algibeira para ver o presente. Vendo que se tratava de carvões, deitou-os fora. Ao chegar a casa, contou ao marido o que vira, e quando falou da paga que recebera, meteu a mão no bolso do avental para mostrar uns restos de carvão. Qual não foi o seu espanto quando, em seu lugar, encontrou pequenas partículas de ouro. Compreendeu então que deitara fora grande riqueza!
Ouvida a narração, o marido disse:
- Isso é coisa de mouras encantadas, e contra o encantamento nada podem as almas cristãs.
No entanto, logo partiram os dois à cata da entrada no palácio do mouro. Pois se ele ficava ali tão perto! Noites e dias, madrugadas e luscos-fuscos, passearam inutilmente todo o sítio. Nem palácio, nem mouro, se bem que algumas vezes lhes parecesse chegarem a seus ouvidos choros de criança!
Passou tempo!
Um dia a pobre mãe precisou de ir a uma feira. No meio do povo que vendia e comprava, reconheceu, mercê do olho lavado com o líquido, o mouro.
Dirigiu-se-lhe a dar a salvação, mas logo ele atalhou:
- Vossemecê conhece-me?
E, palavras não eram ditas, cegou-lhe o olho que ela lavara com o líquido, inibindo-a de poder continuar a perscrutar ou observar os seus segredos.Entre a gente do Castelo, é fama que a formosa pastorinha continua encantada entre os grandes rochedos do Cabril do Zêzere”.